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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O ATALHO DO TEMPO

Encontrei-me, por acaso, com um amigo de infância.
Sentamos, animados, no banco da praça.
Eu pretendia recordar as peraltices da adolescência e
relembrar os colegas em comum, mas ele atolou-se no
marasmo de seus dias sofridos.
- Meu tempo – iniciou ele - desperdicei vasculhando os anais
 dos processos julgados pelos nossos ancestrais. Rebusquei, em pinturas
 antigas, novos sinais dos anjos. Procurei, precipitadamente,
desvendar nos alfarrábios de Deus, a Semente da Vida,
o entendimento pleno do Gênesis. Afoguei-me no silêncio dos mosteiros.
Vaguei à noite, almejando esbarrar com o sobrenatural.
E não percebi as tragédias, as guerras que explodiam sob meus pés.
 Não vi a fome avassaladora ceifando almas esperançosas.
Quis reviver o que já havia sido vivido. Patentear o elixir da eternidade.
 Evidenciar quimeras inexistentes nas lendas mal contadas por farsantes.
E, com o espírito aceso e a algibeira cheia de alucinações,
parti no encalço do Elo Perdido, do Santo Graal, da Atlântida
submersa, do velocino de ouro, da milagrosa flor azul, da lâmpada
 de Aladim e temi me deparar com medusas, gnomos, lobisomens,
magos, sacis-pererês... que passariam a me perseguir pelas
florestas encantadas, com suas árvores carnívoras que andam
 e falam. Sou um pobre peregrino, reprimido, cercado por seres
 invisíveis aos olhos dos mortais; corro o risco de sucumbir no
 meu próprio desespero. Só quando meu sonho se tornou pesadelo,
 foi que despertei para a realidade do século conturbado, ao qual
o meu corpo pertence. Descobri, tarde demais, que não sei nada do
que se passou ao meu redor, pois me afundei num labirinto utópico.
Mas tive tempo de compreender que o Universo gira em sintonia com
a natureza. Que a violência é o troco do descaso. E percebi que sou
apenas um cisco, levado pelas águas, encaminhando-se para a sarjeta,
prestes a mergulhar no ralo da morte. Inútil, cadavérico, flébil,
 frágil, sem nada... nem os amigos me cercam mais.
Pois aquele que remói o passado, caminha em direção
 oposta ao futuro – finalizou.
Olhou para mim como se fosse uma deixa.
Agora era a minha vez de externar as ideias.
Eu fiquei sem saber o que dizer, pois meu pensamento,
enquanto ele se lamuriava, estacionara na imagem que eu
 guardava dele: um rapazinho corado, correndo atrás de
 uma bola com o ímpeto de um guerreiro que defende
seu castelo dos invasores. Hoje vejo um rosto plissado
e dois olhos apagados. Pensei:
- “Será que ele não fez nada de bom nesses anos todos?...
 Não casou?... Não se formou?... Não recordou, ao lado
de um ente querido, alguns dos momentos felizes
que viveu?... Será que passou a vida desenterrando almas
condenadas?... Revirando sepulturas empoeiradas?”
Sem muito pensar, pois era a minha vez de subir ao
 palco, resumi o que ele havia dito:
- Pois é, meu velho amigo, de fato, deixamos de
 ter futuro... quando começamos a viver do passado.
Às vezes, a cobiça nos leva por caminhos que não
 queremos percorrer... buscamos descobrir a razão
 da felicidade alheia e esquecemos da nossa...
Mas nunca é tarde para quem está vivo.
Ele segurou minha mão e sorriu.
Levantou-se e se afastou.
Não tive coragem de chamá-lo de volta e ressuscitar
 um pedaço de nossa infância. Julguei que ele tinha
muito a fazer: retornar à encruzilhada perdida
 e delinear seu verdadeiro sonho, pois pior do que
desvendar uma mentira, é conviver com ela.

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