Baseado
em fato verídico
Era início da primavera... pelos idos de 1941.
Era início da primavera... pelos idos de 1941.
Abílio contava quatorze ansiosos
anos. Ele tinha um enorme desejo de alcançar logo os dezoito. Sua maioridade
significava a liberdade para a realização de um sonho que ainda lhe parecia
longínquo. Toda tarde subia no morro defronte a sua casa e admirava a paisagem
que se estendia ao longe. Quando crescesse, desvendaria aquela distância.
Precisava saber o que existia além dela.
Embora
seu sonho fosse voar, ele aprendeu o ofício que lhe era possível: tornou-se
mecânico. Trabalhou duro na oficina de Seu Dondon – e não dispensava serviço
extra nos feriados - tudo para juntar mais dinheiro e um dia partir. Abílio
mostrou-se habilíssimo em motores. Cada dia que contava escurecer, via clarear
no horizonte a possibilidade de ultrapassar aquelas montanhas.
Sua
mãe, Regina, que tivera nove filhos - três mulheres e seis homens – enviuvara
cedo. Seu marido, derrotado pelo vício do álcool, sucumbira junto com a bebida.
Religiosa, sentindo-se amparada por Deus, não desanimou, batalhou nas
plantações e criou seus filhos com o suor do rosto, o esforço dos braços e
sempre trazendo um sorriso aberto nos lábios.
Apesar
de analfabeta, sem cobrar nenhum tostão, ela era a parteira oficial da região.
Segundo os cálculos dos matutos antigos, ela já fizera pra mais de trezentos
partos – “e não mascou nenhum” – garantiam como elogio para aquelas santas mãos
calejadas.
O
fato é que Abílio ganhou dinheiro e idade. Mesmo contra a insistência da mãe,
que implorava para que ele não fosse, Abílio encasquetou. Porém, para não
despertar sofrimento maior, disse que faria apenas uma viagem de turismo até a
Capital.
Com sua mala pronta, se despediu do
pessoal choroso e partiu.
A
criação de Deus, além das montanhas, alegrava o matuto. Pisou na Capital como
quem desce no paraíso e vislumbra o Todo-Poderoso de braços abertos sorrindo à
sua espera.
Fez
novas amizades e pelo conhecimento que tinha em motores, Abílio foi convidado
para manejar o guindaste do porto. Ele gostava de altura e de cima da máquina
avistava grande parte da cidade.
No
primeiro final de semana, Abílio fez uma visita ao Convento da Penha. Ali, do
alto do morro, se extasiou. A curvatura da Terra era notável na linha do
horizonte. Com certeza, após aquela tênue linha que parecia flutuar nas águas
salgadas, havia outra, e outra, e tantas mais até avistar terra novamente.
Sua
meta de vida passou a ser ganhar mais dinheiro para atravessar aquela linha.
Engajou-se em trabalhos extras como sempre fizera.
Num dia de sol claro, o destino lhe abriu
uma porta estranha. Mesmo atarefado em seu guindaste ele avistou, ao longe, um
avião. Seu sonho voou para o céu. Não deixaria passar essa oportunidade. “Um
dia vou estar lá em cima.” Abílio fez essa promessa e voltou ao trabalho.
O
destino lhe aguçou a curiosidade quando lhe ofereceu um final de semana sem
serviço, nem compromisso. Os olhos de Abílio faiscaram de alegria ao se
imaginar vendo um avião levantando voo bem de pertinho. Embarcou num ônibus
direto para o aeroporto.
Entrou no saguão e algo o desanimou.
Nenhum avião pousado, ninguém aguardando embarque, isso significava que, por
horas, provavelmente, nada aconteceria. Sentou em frente a uma porta de vidro
apenas para admirar a extensão da pista.
Quis o destino - mais uma vez - que um
pequeno avião fizesse um pouso de emergência por problemas no motor.
Abílio postou-se atento às manobras.
Estranhou a correria de alguns funcionários. Conversou com uma pessoa que
conhecia o esquema do aeroporto e descobriu o motivo do pouso.
Abílio,
curioso, foi se achegando na área interna onde se encontrava o aeroplano. Dois
passageiros desceram reclamando e amparando uma moça que passava mal, talvez
comovida pelo susto que levara.
Abílio,
sisudo, se pôs a observar o estado da máquina. Esticava o pescoço de longe
sobre os ombros dos que, autorizados na manutenção, mexiam daqui e dali no
motor do aparelho.
Após
muita confabulação e tentativas, não descobriram o defeito e cruzaram os
braços. Abílio, meio tímido, se aproximou mais um pouco da aeronave. Depois de
dois movimentos de pescoço, indicou a peça que apresentava pequena avaria, mas
que, para o funcionamento do motor, era preciso a sua troca.
Os
profissionais – qualificados - se assustaram. Não tinham atinado para o tal defeito.
Rapidamente se puseram na substituição da peça. O piloto subiu para testar se
funcionaria. Para surpresa de todos, menos para Abílio, o motor ligou com um
barulho suave. Todos sorriram satisfeitos, menos Abílio, pois para ele não
tinha nenhuma graça ver um motor funcionando no chão.
Mas
o destino traiçoeiro sabe agradecer. E quando perguntaram para Abílio como
poderiam retribuir o grande favor... ele não teve dúvida:
-
Um voo sobre a cidade seria recebido de bom grado...
E
foi dessa forma o agradecimento, já que Abílio, expusera, acabrunhadamente, que
nunca voara na vida.
Ao
ouvir que seu pedido fora aprovado, foi como se tivessem dito que ele
receberia, para toda a vida, um par de asas e que poderia voar para onde bem
entendesse.
Se
do morro do Convento da Penha ele avistava o final do horizonte, lá do alto
talvez pudesse ver Deus...!
Como
o avião pousou sem nenhum lugar vago, a moça que viera com a tripulação, ficou
em terra para que Abílio pudesse fazer o passeio.
Assim
ocorreu.
Levantaram um voo tranquilo e subiram.
Sumiram na distância e das vistas das pessoas. Enquanto eles passeavam, todos
buscaram o que fazer. A senhora entrou na sala de recepção do aeroporto, sentou-se
e ficou a esperar. Vinte minutos se passavam e todos atentaram os ouvidos, mas
nenhum barulho de avião. Trinta minutos e a senhora levantou-se. Andou pela
pista de pouso. Observou o céu e nada. Quarenta e cinco minutos e todos do
aeroporto se movimentavam com binóculos enquanto outro chamava pela
telefonista.
E nunca mais foram vistos. Nem
passageiros, nem tripulação, nem aeronave.
A senhora que ficou esperando, cansou e
foi embora num táxi.
A
mãe de Abílio não se conformou com a notícia. Peregrinou em busca de
informações. Porém, dada à tecnologia da época, mesmo percorrendo quase todos
os aeroportos do país, nada colheu.
Resolveu
consultar um religioso que fazia muito sucesso, considerado quase um “santo
vivo”, por ser capaz de relatar, por visões espirituais, o sucedido com pessoas
desaparecidas.
-
Mulher, quantos filhos tivestes? - perguntou o Sacerdote, parecendo sabedor da
resposta.
-
Nove, Padre - respondeu humildemente.
-
Teu gesto é louvável, mãe. Porém, a Santíssima Virgem Maria teve apenas um... e
O presenciou morrer na cruz.
Ela
entendeu o recado e mesmo de mãos vazias, voltou conformada para a sua casa.
Contam seus ex-vizinhos que todas as manhãs, ao abrir a porta, ela esticava o
olhar na distância das campinas, na esperança de ver seu filho regressando.
Essa
esperança morreu velhinha com ela, aos 98 anos de idade.
Uns
comentavam que o avião caiu em alto-mar. Outros afirmavam que todos eles resolveram
sumir no mundo.
Ainda
há, entre os seus conterrâneos, quem garanta que Abílio foi o primeiro ser
humano abduzido do Planeta. Mas eu creio que ele convive com sereias e tritões.
E, quiçá, um dia volte, com poderes magníficos e com a mesma idade que partiu.
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